Tese agora digital para compreender os 30 anos de luta por moradia em Florianópolis

Produção Acadêmica 02/01/2021

Por Lino Fernando Bragança Peres – professor aposentado da UFSC

Neste final de 2020, consegui digitalizar minha tese de doutorado, que até então estava no acervo da Biblioteca Central da UFSC somente em formato impresso. Foi um momento importante por se completarem, em 2020, três décadas da luta que gerou a pesquisa: os 30 anos da Ocupação Novo Horizonte, no Monte Cristo, onde então era o Pasto do Gado. A tese, defendida em outubro de 1994 na Divisão de Estudos de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), recebeu o título e o subtítulo “Crise de um Padrão de Desenvolvimento Territorial e seu Impacto Urbano-Habitacional no Brasil (1964-1992). A Ponta do Iceberg: Os ´Sem Teto' na Região de Florianópolis".

De lá para cá, tivemos os governos de Itamar Franco (1993-94), após o impeachment de Collor (1992), Fernando Henrique Cardoso (1995-98 e 1999-2002), Lula (2003-2006 e 2007-2010), Dilma Rousseff (2011-2014 e 2015-2016), Temer (2016-2017) e o atual Jair Bolsonaro (2018). Houve significativa produção, tanto na área acadêmica em si (trabalhos de graduação, monografias, dissertações e teses) quanto na atuação dos movimentos populares, sobre o tema da moradia e do direito à cidade, no sentido dado por quem o concebeu, Henri Lefebvre. Entre as produções mais recentes acerca do estudo de caso da tese, destaco o belo livro intitulado “Entre o local e a cidade: memórias e experiências de duas gerações de moradores da periferia urbana em Florianópolis (1990-2010)” (Ponta Grossa: Todapalavra, 2019, 334 págs.), do professor Francisco Canella, da UDESC , pelo qual fui convidado a escrever uma apresentação na orelha da capa.

Na tese, abordo o aprofundamento da crise do "padrão ou modelo de desenvolvimento habitacional" de grande escala e sua articulação com a expansão do processo de periferização do trabalho no Brasil, com ênfase principalmente na década de 80 e início dos anos 90, mas que se desenvolveu principalmente no período militar. A pesquisa constituiu-se no estudo da problemática urbano-habitacional brasileira e especificamente em Santa Catarina e na região urbana de Florianópolis, além da revisão bibliográfica dos principais pensadores do tema no Brasil e na América Latina, que estudaram dentro dos marcos de capitalismo dependente e/ou desigual e combinado.

Procurei demonstrar como a habitação coletiva, sob a forma de grandes conjuntos, foi se tornando um elemento de reprodução de segregação e periferização urbanas, como processo econômico, social e territorial resultante de uma modernização excludente no plano da espacialidade do trabalho (forma ampla da concepção de força do trabalho e do trabalhador). Examinei duas formas aparentemente contraditórias de assentamento do trabalho e que tem na área do então Pasto do Gado, depois denominada Monte Cristo, com suas nove comunidades, sua expressão exemplar: a "convivência" entre o maior conjunto habitacional então construído em Santa Catarina, o Panorama, que seria para 2.400 famílias, e ficou incompleto em 1/3, e as cinco comunidades sem teto que o cercavam, mostrando as duas faces de uma política urbana e habitacional segregadora na região.

Compunham este quadro socioterritorial outros conjuntos vizinhos, de diferentes épocas da COHAB-SC e da Prefeitura local e que foram se deteriorando com o tempo, por contínuas omissões do poder público. Esta situação social e urbana local e regional tinha como pano de fundo o grave déficit e carência urbana e habitacional acumulada em décadas, apesar dos avanços quantitativos promovidos pelo regime militar (4 milhões de unidades habitacionais em 21 anos). E isto se estendeu ao longo dos anos 70 e 80, com o surgimento da população dos sem teto, principalmente na segunda metade da década de 80, e posteriormente com os contínuos processos de ocupação de terrenos públicos e privados.

PONTA DO ICEBERG

Este segmento social tem-se constituído na “ponta do iceberg” do enorme e complexo processo de pauperização, espoliação, segregação e periferização do trabalho, dentro dos marcos de uma modernização econômica desigual e contraditória e configurada pelos três níveis da crise do “padrão habitacional de grande escala”: crise de natureza econômico-financeira; a crise político-institucional e a crise do padrão de desenvolvimento territorial (PDT). 

Elas vêm da crise da acumulação mundial dos anos 70, que teve como modelo econômico a alta concentração tecnológica do capital, a intensificação da sociedade urbano- industrial e o monopólio agroindustrial e de exportação. Estes processos, a partir dos anos 90, se expressaram na expansão da financeirização da economia, redundando, já em 2008, em nova crise, de caráter mais explosivo.

De uma política habitacional rentabilista, assentada em grandes conjuntos habitacionais promovidos pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e Banco Nacional da Habitação (BNH), a política habitacional brasileira foi abandonando a prioridade à habitação de “interesse social”, privilegiando os segmentos da população que podiam pagar e impulsionando a ampliação da intermediação privada dos recursos no setor pelo Estado, impossibilitado de responder ao processo de reprodução da força de trabalho na área urbano-habitacional, contribuindo para agravar a crise territorial do país.

Depois da conclusão da tese, ocorreu o crescimento da malha urbana da região metropolitana, com a consolidação da região do Monte Cristo e suas nove comunidades e entorno, e a expansão metropolitana de Florianópolis e os quatro municípios vizinhos, cujos efeitos periféricos a minha pesquisa destacou. Os estudos continuaram, e destaco o da professora Maria Inês Sugai, em tese intitulada “Segregação silenciosa: investimentos públicos e distribuição sócio-espacial na área conurbada de Florianópolis” (Universidade de São Paulo, 2002). Com Maria Inês, em 2004, pesquisamos, no Grupo de Pesquisa Infosolo, o mercado informal de habitação em seis comunidades periféricas de Florianópolis, São José, Palhoça e Biguaçu, que mostrou os impactos da pauperização da população e da pressão do mercado formal nos assentamentos periféricos.

Além destes estudos, atuei na região de Monte Cristo, ao longo dos anos 90 e 2000, com críticas aos programas implementados via Habitar Brasil/BID e o abandono deste e de outros programas pelas administrações municipais posteriores. Lembro que, desde os anos 90, a presença da Prefeitura no bairro vinha aumentando, em especial a partir do governo Sérgio Grando (1993-96), com destaque para a instalação de infraestrutura de esgoto, água e luz, até o segundo governo de Angela Amin (2001-2004) com o Programa Habitar Brasil-BID – esse com problemas e limitações que à época apontamos depois de pesquisa e extensão que coordenei na UFSC. Posteriormente, a Prefeitura se retirou da região de Monte Cristo com seus órgãos de assistência social e habitacional, e destinou recursos para outras regiões, fato que analisei em várioos artigos.

A pandemia que se espalhou em Florianópolis colocou a nu o resultado dessa ausência, que levou a novas carências e ampliou o grau de vulnerabilidade social e sanitária das populações periféricas de Florianópolis e Região Metropolitana. O Covidômetro da Prefeitura de Florianópolis tem mostrado Monte Cristo entre as dez áreas mais atingidas pela pandemia de Covid-19 – tendo já ficado em primeiro e segundo lugar ao longo de vários meses de 2020, revelando os efeitos do abandono das políticas públicas na área habitacional e urbana desde 2004. Chama a atenção o impacto socioespacial da pandemia naquela região e em outras de baixa renda, que são as que mais sofreram e sofrem com a falta de uma política pública de tratamento sistemático da saúde.

O processo de periferização destas regiões por valorização fundiária e imobiliária de áreas mais centrais ampliou-se desde o período de minha tese, com consequências socioespaciais a serem exploradas em outro artigo.

Passados 30 anos daquela ocupação e 26 da defesa da tese, há um longo caminho a percorrer, de luta e de pesquisa, em defesa do direito à terra urbanizada, moradia digna e direito à cidade, mas com justiça e equidade social, principalmente para a classe trabalhadora e à população que sobrevive excluída de sua obra, invisível e inaudível nas periferias.

Com a tese digitalizada, a ideia é contribuir para facilitar o acesso aos que a queiram consultar para fazer estudos comparados com o período estudado até então e ajudar a compreender porque Florianópolis é uma das cidades mais segregadas do país e as causas da crise ou declínio do padrão de grandes conjuntos habitacionais, como política governamental, a partir de final do período militar. Destaco, na tese, o agradecimento que fiz à contribuição e apoio inestimáveis – com trabalho de campo e sistematização – de Elisa Jorge, então estudante de Arquitetura e Urbanismo da UFSC, hoje arquiteta militante da reforma urbana e do direito à moradia e que esteve no gabinete em meus dois mandatos como vereador pelo PT em Florianópolis. 

Por fim, agradeço o apoio prestado pelas servidoras Luciana Bergamo Marques, do setor de Coleções Especiais, e Raquel Bernadete Machado, do Desenvolvimento de Coleções e Tratamento da Informação da Biblioteca Central da UFSC, por todo o suporte para a inclusão da tese no servidor da Universidade, onde fui professor no Curso de Arquitetura e Urbanismo por 37 anos, e hoje professor voluntário desta instituição por opção e amor pela docência.

Os links dos dois volumes são esses:

http://tede.ufsc.br/teses/MX0019_1-T.pdf

http://tede.ufsc.br/teses/MX0019_2-T.pdf

Publiquei um resumo da tese nos Anais do Encontro Nacional da Anpur em maio de 1995, disponível em PDF no final do texto.

PERES, Lino Fernando Bragança. Da crise do padrão habitacional de grande escala à expansão das periferias urbanas: os sem-teto como a ponta do iceberg do processo de segregação e exclusão sócio-espacial. In: Encontro Nacional da Anpur, 6, 1995, Brasília. Anais... Brasília: ANPUR, 1995. p. 106-125. 

Abaixo anexo um vídeo produzido pelo jornalista Rubens Lopes que mostra uma das caminhadas que faço com alunos no Monte Cristo (gravação feita no primeiro semestre de 2018).

 

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