PROFESSORA E PESQUISADORA DE ESTUDOS DE GÊNERO COMENTA DECLARAÇÃO DO PREFEITO DE FLORIANÓPOLIS SOBRE O PLANO DE EDUCAÇÃO
COMO SERÁ A REAÇÃO DOS EDUCADORES FRENTE À DECISÃO DO PREFEITO?
Certamente, os/as profissionais da educação da Rede Municipal ficarão perplexos, outros indignados, outros indiferentes, outros ainda mais fortalecidos para a continuidade dos estudos em gênero e na busca pelos conhecimentos científicos que expliquem as identidades e, muitos/as terão, ainda, a certeza da necessidade de uma separação entre assuntos do âmbito da pedagogia e aqueles de interesses político-religiosos. Currículos escolares são pensados e elaborados de forma coletiva, por profissionais que estudam para isso, que olham para as práticas pedagógicas e para o interior da escola, do cotidiano da sociedade e, acima de tudo, olham para suas crianças e jovens. As crianças que estão nas escolas são sujeitos de sexo, de classe, de raça-etnia, de religião, de nacionalidade, de condição física e, também, de gênero e sexualidade. Há uma distância muito grande entre os políticos das bancadas fundamentalistas e os profissionais da educação que trabalham na Rede Municipal. Está evidente para mim que o impasse é político-ideológico, ou seja, estamos vendo uma "guerra santa" das bancadas religiosas contra o Movimento LGBT, em âmbito nacional e, para isso, para atingir o Movimento, esses políticos resolveram atacar os documentos legais da Educação. Aliás, visões de mundo baseadas em crenças religiosas são um tipo de ideologia. Mas lembro que a Constituição Federal garante que nenhuma pessoa pode ser vítima de qualquer forma de preconceito, e machismo e misoginia são formas de preconceito decorrentes do nosso gênero (assim como a xenofobia é um preconceito decorrente da classe; assim como o racismo é um preconceito decorrente da origem étnico-racial; assim como a homofobia e a lesbofobia são preconceitos decorrentes da orientação sexual da pessoa). Portanto, não se anula uma identidade do interior da escola, da sociedade ou da família pela retirada de uma palavra de um texto... Excluir palavras apenas omite, invisibiliza, oculta, exclui essa realidade do texto. E... isso é um ato político, ideológico e de deliberado preconceito. A categoria gênero está presente na vida das pessoas, ela nunca vai deixar de existir. Não é possível retirar essa identidade da vida das pessoas, pois ela faz sentido no cotidiano, desde o momento em que se nasce, durante toda vida.
QUAL A CONSEQUÊNCIA DE DEIXAR DE DISCUTIR A QUESTÃO DE GÊNERO DENTRO DA ESCOLA? E DA INEXISTÊNCIA DE UMA POLÍTICA QUE ACOMPANHE A ABORDAGEM DENTRO DA SALA DE AULA?
Essas temáticas não deixarão de ser discutidas, pois elas estão presentes no dia-a-dia da creche, dos núcleos de educação infantil, das escolas básicas, dos recreios escolares, da educação de jovens e adultos, das reuniões pedagógicas, dos conselhos de classe, das reuniões de pais e mães... Quando você deixa de discutir um assunto causador de desigualdades sociais, quando você escolhe o silêncio, você tende a manter o preconceito... Mas não é isso que vai acontecer, pois essa discussão é permanente na Escola. Para qualquer discussão existir no âmbito educacional não precisamos de leis. As leis são importantes, pois formalizam políticas públicas, mas antes delas existirem (as leis) é a existência da realidade concreta e subjetiva das pessoas que mobiliza a sociedade e a escola para a inclusão de certos temas. Por exemplo, muito antes da existência da legislação que garante a Educação Especial, se discutia com intensidade, há muitas décadas, a necessidade da educação inclusiva e o combate da discriminação às pessoas com deficiência, no interior da sociedade e na sala de aula.
VOCÊ PERCEBE NA DECLARAÇÃO DO PREFEITO MAIS UM INDÍCIO DE QUE O ESTADO LAICO E A EDUCAÇÃO ESTARIAM EM RISCO?
Sempre considerei as instituições democráticas, em nosso país, sólidas. É difícil dizer o que vai acontecer, pois o quadro político atual é inédito. Nunca vivemos tempos de tanta influência de religiões cristãs nas instituições democráticas. Nós, educadores, precisamos entender este fenômeno, para saber até onde ele pode chegar e quais são as consequências. Penso que o Estado brasileiro precisa discutir quais são os limites da religião na laicidade do estado, quer seja ele municipal, estadual ou federal. O próprio conceito de estado laico parecer estar sob rasura. É um grande desafio. E, é claro, lembro que religião também é uma questão de identidade e, portanto, a livre expressão religiosa é tão importante quanto a livre expressão sexual ou de gênero. A democracia tem que saber conviver com a pluralidade e encontrar uma forma de conciliação, que não transgrida a ética, os direitos humanos e o estado laico.
O PREFEITO IGNORA OU DESCONHECE A NECESSIDADE DESSES TEMAS PARA AS DEMANDAS DAS/OS PROFESSORES DA REDE MUNICIPAL?
Não sei exatamente se a decisão do prefeito foi motivada por suas convicções ideológicas ou políticas. Desconheço os acordos políticos e pressões que recaem sobre o prefeito. No entanto, sei que há políticos que estão completamente fechados para o diálogo e para explicações que os façam ver o equívoco teórico que essa "ideologia de gênero" apresenta, e mais, que ela não existe no interior da escola. Lembro que participei das discussões do Plano Nacional de Educação, nos Fóruns regionais, em 2010, coordenando a discussão sobre "Diversidade e Educação Inclusiva". Atualmente, dentre minhas atividades na UDESC, sou coordenadora de um Programa de Extensão, de formação continuada, desenvolvido na Rede Municipal. São as Unidades Escolares que escolhem os temas e, sempre, todas, há mais de três anos, solicitam abordar e debater os estudos das relações de gêneros no desenvolvimento infantil e adolescente, discutir as manifestações da sexualidade na infância e práticas pedagógicas e a multiplicidade contemporânea dos modelos de família. Quando termina uma formação, as unidades escolares decidem se querem organizar uma reunião de pais e mães para conversar sobre os assuntos. Eu sempre estou presente e apresento a proposta pedagógica... Discutirmos juntos quais as atividades podem ser feitas e em quais referenciais teóricos e científicos nos baseamos. Em todas essas creches do município, nunca nenhum pai ou mãe me disse que não poderia trabalhar esses conceitos por serem errados ou danosos. A informação e o esclarecimento são o diferencial! Quando pais e mães conhecem propostas pedagógicas consistentes, sérias, científicas e que querem o bem estar de seus filhos e filhas, não há oposição a quaisquer temáticas no interior da Escola. Esse é o papel das famílias: participar da escola, conhecer e opinar sobre o Projeto Pedagógico e acompanhar o desenvolvimento de seus filhos/as.
EXISTE UMA INTERCONEXÃO ENTRE A EDUCAÇÃO SEXUAL E OS ESTUDOS DE GÊNERO?
Na década de 1980, a educação sexual começou a ser trabalhada nas escolas brasileiras, muito por conta da AIDS e do entendimento da necessidade de prevenção (do HIV e da gravidez). Inicialmente, o conteúdo era ministrado especificamente para adolescentes do ensino médio e sempre numa perspectiva biologista: como ocorre a gravidez, o contágio de doenças e como usar o preservativo. Muitos educadores ensinavam isso sem levar em conta os estudos de gênero e as desigualdades e preconceitos. Depois de certo tempo, ficou evidente que a informação baseada apenas na biologia não mudava o comportamento da juventude, assim como cresciam os índices de gravidez precoce e a transmissão de doenças. As pesquisas mostraram que a prevenção dependia mais do comportamento das meninas e que a atitude responsável frente à sexualidade estava relacionada ao empoderamento na hora de negociar (ou não) o uso do preservativo. Bingo!!!! A importância dos estudos de gênero estava comprovada, pois o modo desigual como educamos meninos e meninas os fazia ter atitudes e entendimentos diferentes, em relação à Aids, ao HIV, à gravidez, à iniciação sexual precoce. O mesmo ocorre em relação à violência doméstica que assola as mulheres brasileiras. No Brasil, milhares de homens jovens morrem no trânsito, em brigas, nos estádios de futebol, no consumo de drogas. Essa violência está associada a uma forma de masculinidade, heterossexual, hegemônica, extremamente agressiva, observada em certos homens e explicitada em seus relacionamentos com mulheres, crianças, animais domésticos e/ou sujeitos LGBT. Portanto, há um componente social e cultural na definição do gênero e, infelizmente, o modo como educamos nossos meninos torna o Brasil um dos países mais violentos do mundo.